quarta-feira, 15 de junho de 2011

Limite (1931)

Arranca hoje o primeiro ciclo da Tertulia de Cinema dedicada a um país. A escolha inicial recaiu sobre o Brasil. Na minha opinião essa é uma escolha que faz sentido por, sendo o maior país de lingua portuguesa, com o qual temos uma enorme ligação e que históricamente possui um grande nivel de produção cinematográfica de qualidade, quantos de nós podemos dizer que conhecemos bem a sua cinematografia, para além de um número muito restrito de filmes? Para mim seria então importante que este ciclo nos ajude a desenvolver de alguma forma a vontade de explorar a obra de grandes realizadores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Rogério Sganzerla, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Peixoto, Eduardo Coutinho, Leon Hirszman, Júlio Bressane, Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, Ruy Guerra, Humberto Mauro, Hector Babenco, Arnaldo Jabor, Carlos Reichenbach, Ozualdo Candeias, José Mojica Marins, Walter Lima Jr., Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, Walter Salles, Andrea Tonacci, Roberto Farias, Carlos Manga, Anselmo Duarte, Walter Hugo Khouri ou Domingos de Oliveira, para nomear apenas alguns.
A primeira obra a ser apresentada neste ciclo será “Limite”, o único filme concluído por Mario Peixoto, filmado em 1930 quando o realizador tinha 22 anos de idade. Um filme que, tendo estreado em 1931, não chegou a ter distribuição comercial e cuja única cópia esteve em risco de destruição em 1959 por deterioração, mas que, graças a um trabalho de restauro durante os vinte anos seguintes, foi recuperado e alcançou finalmente a consagração em 1988, quando foi eleito pela Cinemateca Brasileira como o melhor filme brasileiro de todos os tempos.
Quem foi então Mario Peixoto e como chegou à realização desta obra única do cinema brasileiro e mundial? Nascido em 25 de Março de 1908, em Bruxelas, pertencia à alta burguesia brasileira, tendo entre os seus antepassados o comendador Joaquim Breves, que havia sido o maior plantador e exportador de café do Império (e também o maior traficante de escravos). Teve então no Brasil uma educação extremamente burguesa e em 1926 viajou para Inglaterra para estudar. Mas meses depois da sua chegada decide tornar-se actor (contra a vontade do pai que queria que seguisse a carreira de médico) e voltou ao Brasil, onde se envolveu então com os circulos de teatro e cinema do país. É importante notar que nesta altura no Brasil (como outros paises) verificava-se um fenomeno que criou novas oportunidades ao cinema nacional: o facto do cinema sonoro ter surgido criou num periodo especifico um entrave à aceitação de produções estrangeiras pelo publico. Este facto, aliado a uma maior discussão e teorização em grupos cinéfilos fez com que surgisse um certo impeto no cinema Brasileiro, resultando em 1929 em produções importantes como “Barro Humano” de Adhemar Gonzaga, “Sangue Mineiro” de Humberto Mauro ou “São Paulo: Sinfonia da Metrópole” de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny.

Mario Peixoto num papel secundário de “Limite”

Foi neste ano que Mario Peixoto decidiu voltar à Europa, agora a Paris, de forma a ter a possibilidade de visionar obras a que tinha dificil acesso no Brasil de cinematografias como a soviética, a francesa ou a alemã. Nas suas próprias palavras, para “estudar a coisa”. E foi também nessa viagem que segundo ele, nasceu a ideia que levaria à realização deste filme. Um dia ao ir encontrar-se com familiares à Gare du Nord, reparou na capa da revista Vu exposta num quiosque: um rosto de mulher, de frente, olhar fixo com duas mãos masculinas algemadas em primeiro plano. Foi esta foto de André Kertézs que, segundo o realizador, gerou todas as outras imagens do filme.

Capa da revista Vu que serviu de inspiração ao filme

Nos meses seguintes escreveu o argumento de “Limite”(concluido no inicio de 1930, já no Brasil), do qual não pretendia ser o realizador. Convidou primeiro Adhemar Gonzaga e posteriormente Humberto Mauro para essa tarefa, mas a resposta de ambos foi idêntica: o argumento (que estava detalhado ao pormenor) era tão tão único e diferente que só quem o tinha escrito o poderia filmar. Estas duas respostas negativas levaram-no então a decidir realizar o filme.

Imagem de abertura de “Limite” inspirada na foto de André Kertézs

Sobre o filme propriamente dito, a sua história é relativamente simples: começa por nos apresentar três pessoas, um homem e duas mulheres, num pequeno barco no mar alto. Já sem agua, debaixo de forte sol e prestes a ficar sem comida, apresentam-se no extremo da desolação. O restante do filme mostrará através de sucessivos flashbacks o que levou cada um deles a esta situação de isolamento da sociedade, concluindo então com uma (certa forma de) resolução.


O que torna torna o filme tão especial é o cuidado, o planeamento e sensibilidade colocados em cada plano, na sua interacção com a banda sonora (apenas musical), na utilização de meios puramente cinematográficos (de uma forma que para mim se aproxima da magia) para expressar este sentimentos de aprisionamento, desolação e fuga (diria que tão louca como o amour fou nos filmes surrealistas) da sociedade. É para mim dificil encontrar paralelos no cinema para a expressão destes sentimentos com esta força. Talvez só na fuga de Karin no fim do “Stromboli” ou no suicidio de Alain Leroy no “Le Feu Follet”. Mas esses são filmes diferentes.
Este é um filme que deve ser o minimo explicado e não o tentarei adiantar mais. Como afirma o próprio Peixoto, a experiência oferecida por “Limite” não pode ser adequadamente capturada pela linguagem, mas foi feita para ser sentida. Para ele o expectador deve ser subjugado às imagens como “angustiantes acordes de uma sintética e pura linguagem de cinema”. O seu filme é como um “grito almejando ressonância ao invés de compreensão”. Para ele “o filme não ousa (ou não quer) analisar. Ele mostra. Ele se afirma como um diapasão, capturando o fluxo entre passado e presente, detalhes de objetos e contingências como se sempre tivesse existido nos seres e nas coisas, ou destes se desprendendo tacitamente”.


Para terminar acho importante apontar que “Limite” (e é um ponto que penso que deve ser tido em conta ao vê-lo) foi duramente atacado pelo realizador seguinte deste ciclo, Glauber Rocha, que considerou Mario Peixoto como “longe da realidade e da história” e o filme como “incapaz de compreender as contradições da sociedade burguesa”, uma “contradição historicamente ultrapassada” e “uma produção da burguesia intelectual decadente”. Será pois especialmente interessante ver os dois filmes em sequência como está programado.

Edgar Brazil (Director Fotografia) e Mário Peixoto na rodagem de “Limite”


Paulo Soares

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